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We are Borg!
Antropofagia: Um Futuro Primitivo no Brasil de Cem Anos Atrás

Há cem anos, nutridos pelo espírito de liberdade revolucionária francesa, artistas da modernidade evocavam um “comestível” futuro primitivo. A indigesta encruzilhada tecnológica e industrial do início do século XX, porém, desafiou os seres humanos a partirem em busca de suas essências indígenas e compeliu os artistas modernos a trazerem as suas contribuições à mesa—muitas vezes com recursos estilísticos difíceis de engolir!
O modernismo brasileiro tinha um caráter nacionalista. Não se tratava de fazer uma adaptação de todas as iguarias que seus expoentes devoravam como comensais na Europa, já no fim da Belle Époque. Buscava-se, ao contrário, responder à pergunta: qual deve ser a natureza original da brasilidade? Qual fosse a resposta, esta deveria se expressar como uma “receita” artística renovadora, moderna e brasileira: a “antropofagia”.
A busca por um “tempero” ou uma “essência” visual e antropológica nativa, no entanto, parecia ser um projeto de imensa profundidade filosófica. O próprio poeta Oswald de Andrade (1890–1954), impulsionador teórico do movimento defendeu na Universidade, anos depois, uma tese intitulada: "A Crise da Filosofia Messiânica" (1950), na tentativa de revisar e ampliar aquela sua ideia original dos anos 20, porém, sem sucesso—o movimento modernista esperaria ainda quase uma década para ser institucionalizado, digerido e regurgitado pelas elites!
Nos anos 20, os desdobramentos deste empreendimento poderiam trazer respostas imprevisíveis; mas as suas conclusões eram ainda assim bastantes óbvias: a natureza, o indígena, e depois, o negro, o primitivo, numa palavra: o mestiço; estes seriam os representantes dessa força nativista e libertária tanto na forma quanto no conteúdo.

Na literatura, na música (com Il Guarany—1870—ópera do compositor de ascendência negra Antônio Carlos Gomes), bem como nas artes plásticas, em pinturas como A Derrubada de Uma Floresta (1822–25) de Johann Moritz Rugendas e O Último Tamoio (1883) de Rodolfo Amoedo, já se antecipavam, ainda que muito nebulosamente, essas mesmas metáforas da “assimilação,” “consumo,” e “digestão,” promulgadas no Manifesto Antropofágico (1928) de Oswald de Andrade, desta vez numa cultura brasileira, como se queria, “livre de catequismos.” Anos depois, aprenderíamos com Michel Foucault a associar essas “metáforas de nutrição” ao “biopoder.”
Nutrição como metáfora artística perfeita: a antropofagia do imaginário europeu convertido no Brasil, na verdade, possui um histórico envolto nos três grandes aspectos do “primitivismo”: o mistério, o fascínio e o medo. A civilização, para vencer seu mal-estar deveria vencer a morte (ou o grande “mistério,” através do abraço cego ao cientificismo), vencer a superstição (presumindo se livrar do medo, a partir do esclarecimento), e vencer a fragilidade humana diante da força colossal da natureza, através da razão, do mito e da arte.
Aquisição cultural pela nutrição—logo no início do Brasil agroexportador, um aventureiro e mercenário alemão Hans Staden (1525–76) presenciou índios Tupinambá praticando a antropofagia, presumindo que essa prática diabólica era uma mera “forma de se vingar de seus inimigos”. Porém, tanto para os Tamoios quanto para alguns índios Tupi-Gurarani essa atividade festiva de vitória, “apropriação, assimilação e consumo” das virtudes humanas contidas no corpo do outro podia ser incitada e calculada por meses e até mesmo um ano antes dela efetivamente ocorrer. Antes disso, o inimigo vencido, escolhido a dedo, era alimentado, embelezado, e a ele era oferecido uma linda mulher com a qual poderia se relacionar carnalmente, aguardando o belo dia em que essa assimilação final se realizasse.

Desassimilação—forma sem conteúdo: as posteriores gerações modernistas, bem como a arte contemporânea brasileira, serviram mais de alimento do que se alimentaram daquele espírito original—we are not Borg anymore! Formalmente, a arte brasileira estava de fato liberta do catequismo, mas a sua essência, seu conteúdo, continuara eurocêntrico e com crise de identidade. Dois motivos aparecem entre os principais, embora mal tocados: a arte brasileira como entretenimento de classe (preconceito de classe) e, mais propriamente, como racismo (exclusão racial) impediram a sua evolução. A antropofagia faz 100 anos. Agora, como uma senhorinha banguela e centenária, resta à arte brasileira deliciar-se com uma boa, porém já fria, sopa de conteúdo negro, justamente porque, com o massacre dos 400 anos de escravidão e seus desdobramentos na forma da violência física e psicológica contra o afro-índigena, o dia a dia, a sensibilidade e o imaginário do país se entorpeceram. Por séculos a “caçada na selva” converteu-se não só em pura adrenalina aventureira, mas também como retorno virtual dos primatas humanos à primitiva cadeia alimentar.
Essa carne negra, “a mais barata no mercado” é, no entanto, a mais dura e difícil de roer. Por isso mesmo que, num ainda agrário Brasil, chamado também há cem anos de “País do Futuro”, tanto o modernismo quanto o “futuro primitivo” já centenários, não foram ainda devidamente remastigados, sequer deglutidos—embora estes pratos tenham sido servidos quentes já há cem anos atrás.
Renato Araújo da Silva (1973) é um filósofo, pesquisador e curador de arte africana. É consultor de arte africana para a Coleção Ivani e Jorge Yunes e pertence ao grupo contemporâneo de críticos de arte no Centro Cultural de São Paulo. É autor dos livros Temas da arte africana (Ferreavox/2018); África, Mãe de Todos (Museu Oscar Niemeyer/2019); e Outra África: trabalho e religiosidade (Museu de Arte Sacra/2019), e escreveu o trabalho Africanisms inside a Museum from Brazil (Taylor & Francis Group/ 2015) entre outros.